Há alguns dias, vi uma postagem no Threads defendendo a repostagem com o argumento de que apenas cerca de 10% dos seguidores recebem nossos posts e que novos seguidores não veem a maior parte dos posts anteriores. Essa semana, vi algo semelhante no notes, aqui no Substack: alguém escreveu que deveríamos dar restack em artigos antigos porque muitos dos que nos segue/inscreve não veem tudo no momento em que é publicado. E eu complemento: tem gente nova chegando no Substack todos os dias. (#ficaadica).
Eu comecei essa newsletter em 2022 com a meta de publicar todas as semanas, o que consegui por alguns meses. Daí comecei um curso de especialização e, como meu tempo se tornou ainda mais escasso, a meta mudou para cada duas semanas. Até que problemas pessoais/familiares retiraram toda minha vontade de escrever por aqui e essa news passou quase um ano sem novas publicações. Retomei as atividades por aqui no início desse ano e resolvi apagar tudo que havia publicado antes (foi parte do ritual de recomeçar).
Mas eu gosto em especial de um dos textos que foram apagados e, inspirada por todo esse incentivo ao repost, resolvi trazê-lo de volta (com alguns ajustes ao original). Ele segue abaixo e é um convite para apreciarmos mais as coisas boas e encantadoras que o ser humano é capaz de produzir.
Na arte o espírito se reconhece
Gosto muito de viajar, mas não para qualquer destino. Destino de natureza (ou predominantemente de natureza) é um deles. Não me leve a mal: eu gosto de natureza e defendo que seja preservada.
A questão é que, quando o assunto é conhecer novos lugares, minha alma pulsa por cidades, de preferência grandes, com muita história para contar e diversidade de coisas para ver. Adoro andar pelas ruas e apreciar a arquitetura, os monumentos, as praças. Tenho um apreço imenso por centros históricos, igrejas centenárias e estabelecimentos comerciais que abriram as portas quando “tudo era mato” e seguem resistindo às transformações dos tempos. E gosto especialmente de saborear a comida local num bom restaurante e visitar os museus, em especial os de arte, e ver os tesouros que abrigam. Até eu mesma já achei essa preferência estranha, já que, mesmo no meu ciclo pessoal, é comum que as pessoas prefiram (ou coloquem no mesmo patamar) viagens para praia ou para montanha, para fazer uma trilha ou conhecer um parque.
Em julho de 2022, fiz um curso de escrita de histórias de viagem. Todos os participantes eram pessoas que viajavam bastante. Tivemos que escrever pequenos textos como exercício e um texto maior como trabalho final, contando histórias das nossas viagens. Era comum que os textos dos colegas relatassem histórias vividas na praia, na estrada, numa trilha. Nenhum dos meus foi assim. Meu texto final foi um tributo aos dias que passei na Itália, em 2017, e ao longo dessa escrita dei um passo à frente na compreensão do porquê prefiro fazer viagens culturais, onde o destino é quase sempre alguma cidade grande. Na ocasião, escrevi assim:
Penso se estaria melhor numa praia na Sicília ou numa trilha nas Dolomitas. Concluo que não. É fácil gostar da natureza, pois nela vemos de forma mais direta a criação divina. O mesmo nem sempre acontece com o ser humano. Mas coisas como ver a arquitetura do Duomo de Milão, os detalhes do Davi de Michelangelo, ou as esculturas de Bernini na Piazza Navona me lembram que o divino também opera através de nós e, por isso, também podemos criar coisas boas e belas. Isso me faz renovar a fé na humanidade.
Pouco tempo depois, em setembro de 2022, comecei uma pós-graduação em História da Arte. Uma das disciplinas era Teorias Estéticas. Logo nas primeiras aulas, fui apresentada à obra “Cursos de Estética”, de Hegel, e decidi que essa seria a linha na qual focaria os meus estudos sobre o tema. E, lendo o ‘Cursos de Estética I’ descobri que Hegel desenvolveu o seguinte raciocínio: Deus é espírito, e este espírito passa pelo homem e pela natureza e se manifesta através de ambos, porém, apenas por meio do homem o espírito divino passa (e se manifesta) de forma consciente; na natureza, o meio de passagem do espírito divino é sem consciência. Por isso, para Hegel, o belo artístico é superior ao belo natural porque na arte o espírito se reconhece, na natureza não [1].
Isso aumentou ainda mais minha compreensão a respeito das minhas preferências em relação aos destinos de viagens. Embora aprecie a manifestação do divino através da natureza, não me reconheço nela, pois, como ser humano, não sou capaz de criar uma cachoeira ou uma árvore. Já naquilo que é manifestação consciente do espírito humano, eu me reconheço e me reconforto, pois ali vejo a materialização da capacidade humana para o bem e para o belo.
Foi nessa mesma época que estive na Ilha do Ferro: um pequeno povoado de apenas 400 habitantes, localizado no sertão do Estado de Alagoas, às margens do rio São Francisco, onde a arte popular tornou-se uma das principais atividades econômicas e, no bojo da arte, o turismo vem se expandindo. Os artistas da Ilha do Ferro não adquiriram conhecimento de maneira formal: não frequentaram escolas de artes, não tiveram aulas ou mentorias com um mestre. Na verdade, alguns deles possuem pouquíssimo estudo. Tudo que produzem é fruto da expressão espontânea do espírito e do saber ancestral.
Perguntei a todos os artistas com quem tive o privilégio de conversar de onde vinha a inspiração para o trabalho. Alguns falaram sobre a influência de outros artistas locais, outros sobre as coisas que fazem parte da cultura e da paisagem local, e todos falaram que a inspiração, muitas vezes, é “algo que vem” na imaginação. E ali, naquele povoado pequeno, conversando com pessoas simples, compreendi melhor a teoria de Hegel. Há manifestação do espírito divino na arte produzidas por aquelas pessoas e nela o meu espírito se reconheceu e se emocionou.
Sequência das fotos:
Ateliê do artista Yang e cadeira do artista Valmir Lima.
Mãos de uma senhora que fazia bordado Boa Noite (típico do povoado) na porta de casa e o bordado Boa Noite de Dona Rejania.
Fachada de uma galeria na Ilha do Ferro e peças exposta no Museu Espaço de Memória Artesão Fernando Rodrigues dos Santos.
👋 Para terminar…
Semana passada assisti O Museu, mini-série de 6 episódios curtinhos e com um humor ácido muitooo divertido e necessário. Está disponível no Star+.
Como nesse texto falei de Itália, aproveito para recomendar o livro Bella Figura. Conta a história real da autora durante seu ano sabático em Florença e é uma verdadeira aula sobre o estilo de vida toscano. É um dos meus livros preferidos!
Na mesma linha, tem o livro Quatro Estações em Roma, do mesmo autor de Toda Luz que Não Podemos Ver. Conta a história do autor e sua família durante o ano que passaram em Roma, quando ele foi contemplado com uma bolsa de estudos da Academia de Arte Romana. É uma história e tanto, além de ser um guia da cidade.
Pra finalizar… eu não sei vocês, mas eu tenho pets (uma gata e um gato) e eles são como filhos para mim. Então, vocês não imaginam o prazer que é ler a Pet Letters, newsletter que traz semanalmente histórias reais de amor entre tutores e seus pets. Vale a pena assinar!
[1] A ideia de Hegel é muito mais complexa e extensa. Aqui faço um imenso esforço de resumo para não me estender ainda mais.
[2] De Hegel pra cá, a arte mudou e as compreensões de beleza também. Nesse aspecto, gosto especialmente das teorias estéticas desenvolvidas por Arthur Danto, filósofo estudioso da arte contemporânea e de como a beleza se manifesta através das novas linguagens da arte. Mas isso dá outras edições da newsletter :)
Amei tanto essa edição (e não é só porque fui mencionada no final!)
Uma vez, em uma conversa entre amigos, alguém perguntou qual era a coisa mais impressionante que já tínhamos visto ao vivo.
Pensei logo de cara no Perito Moreno, o glaciar em El Calafate. Mas logo em seguida pensei na emoção que senti ao conhecer a Sagrada Família em Barcelona. Não soube escolher.
Cheguei na mesma conclusão que você. A Sagrada Família, Duomo de Milão, Davi, as obras na Ilha de Ferro.. tem algo de muito especial em cada ser humano que fez arte. É, sem dúvida nenhuma, a representação do divino que habita em nós.
Que bom que você deu esse repost ☺️
eu gosto de viajar pra natureza porque, por vezes, o que eu mais quero é ficar longe de gente. mas também gosto da oportunidade de observar a arquitetura e as criações humanas e conhecer quem carrega um pouco da história de um local. acho impossível não se sentir bem em Roma diante dos monumentos históricos e trocando uma ideia com os donos de bancas de revistas (me pergunto se ainda estão lá) que gostam de conversar com turistas. obrigada por evocar essa lembrança :))