Aperçu #06: Preciso falar sobre Ripley
e compartilhar umas coisas legais que vi desde a última edição
Talvez, a essa altura, falar sobre a série Ripley seja chover no molhado. Afinal, muitas pessoas já assistiram e falaram sobre isso, inclusive aqui no Substack, e esse foi um fatores que me convenceram a assistir.
O fato é que eu havia assistido ao filme O talentoso Ripley em 1999 (ou 2000, já não lembro) e, na época, fiquei com uma sensação muito ruim. Passei dias com medo de levantar no meio da madrugada para ir ao banheiro e avaliando todos ao meu redor (será que essa pessoa é psicopata? o que será que ela pode fazer comigo?). Minha lembrança é de que o filme foca muito na personalidade psicopata do Ripley e o Matt Damon fez um Ripley bem convincente da capacidade de maldade do ser humano.
Quando a série estreou, e a Netflix começou a me recomendar, dicidi de pronto que não assistiria porque não queria voltar a ter aquelas sensações. Mas após ler tantos comentários bons, decidi assistir e estou até agora pensando: por que não fiz isso desde o primeiro dia que descobri a série?
Ela é excepcional: envolvente, sofisticada, complexa! Na minha avaliação, MUITO melhor do que o filme. As personagens são mais bem exploradas, as cenas mais desenvolvidas, o Ripley mais ambíguo e provocador e mais uma série de outros aspectos que, ao contrário do filme, me tocaram muito positivamente. Alguns deles são:
Começando pelo mais óbvio: a fotografia. Já cansei de ver enquetes no Instagram perguntando: preferem fotografia colorida ou preta e branca? Em todas, sem exceção, as coloridas ganham. Uma das razões para isso é que cores despertam mais os sentidos. Se por um lado isso é bom, por outro, cores causam muita distração. Isso ficou mais claro para mim quando assisti a uma entrevista com Sebastião Salgado e perguntaram por que ele fotografa em preto e branco. A resposta foi: porque cor distrai e eu quero que o observador foque na essência do que estou mostrando. A série Ripley é muito cheia de detalhes, nuances, e mensagens que não são tão escancaradas; o espectador precisa de atenção para perceber todas elas e compreender plenamente a personalidade dos personagens e a complexidade dos acontecimentos. Agora, já pensou atentar para os mínimos detalhes (que é onde mora o Ripley, ops…, o diabo) com o azul intenso do mar de Atrani ou o colorido das construções de Roma e Veneza competindo por atenção (e provavelmente ganhando)?
A trilha sonora. Eu duvido alguém não se tele-transportar para a Itália da década de 1960 ao escutar, entre outras tantas músicas italianas da época, essa aqui 👇
A arte. Ela é tão presente na série que preciso dividir esse tópico em três.
A mensagem é clara: a obra de Picasso tem a capacidade de instigar e seduzir até mesmo uma pessoa pouco conhecedora de arte. E possuir um Picasso tem um valor e um significado que está muito além do que qualquer preço que um leilão possa chegar. O lugar de destaque que o quadro de Picasso ocupa durante toda a série, especialmente no final, diz muito sobre isso.
O paralelo com Caravaggio é genial. Ripley e Caravaggio são personalidades opostas capazes da mesma coisa: matar. Ao contrário de Ripley, que é frio e com alta capacidade de controle, Caravaggio era muito passional, vivia se metendo em discussões que muitas vezes chegavam às vias de fato e, numa dessas, ele matou um homem. Isso aconteceu em 1606 e, a partir de então, Caravaggio se tornou um fugitivo da polícia/justiça. Durante esse período, ele fez algumas de suas sobras mais dramáticas, com ainda mais contrastes entre luz e sombra, e onde a morte muitas vezes é tema central. Um exemplo desse período é a pintura Davi com a cabeça de Golias, datada de 1605-10, que aparece algumas vezes na série. Ripley se aproxima da obra de Caravaggio após ser questionado por Dickie se a conhecia. Ele se torna um estudioso das pinturas e se inspira nelas para arquitetar alguns de seus crimes.
A propósito, o fato da série ser em preto em branco também conversa muito com o chiaroscuro, marca patente da obra de Caravaggio.
O último episódio mostra muito claramente que, em se tratando de arte (embora isso caiba para outras coisas também), estar no lugar certo, no momento certo, envolvido na “treta” certa e, principalmente, com a pessoa certa pode te colocar em lugares que talento nenhum sozinho pode colocar. E assim, o mundo está cheio de gente talentosa que nunca será conhecida e de “Marges” que brilham.

O gato. Ninguém mais poderia fazer aquele papel. Ele nos coloca na história; ele é cada um de nós, espectadores silenciosos que nada podem fazer. Ou podem? No fim, o Ripley deve uma a ele. E atire a primeira pedra aquele que, em algum momento, não sentiu alguma empatia pelo Ripley.
Uma dose pessoal de distanciamento histórico. Enquanto assistia, quase o tempo todo eu pensava: se fosse hoje em dia, isso seria diferente. Se O talentoso Ripley se passasse hoje, muita coisa teria que ser reescrita. O maior acesso à informação - inclusive a pesquisas estatísticas -, e o foco da imprensa em coisas negativas (em parte por nossa culpa, afinal, o ser humano é mais atraído pela notícia de um assassinato ou do que pela de um grupo plantando árvores pela cidade), faz muitos acharem que vivemos em tempos mais perigosos. Mas o fato é que a tecnologia, quando usada de modo inteligente e bem-intencionado a nosso favor, tem nos livrado de muitos perigos e dificultado a vida de criminosos.
Se em 1961 existisse rede social e o Dickie tivesse um perfil cheio de fotos e vídeos quase toda essa história teria que ser reescrita. E se o homem que passeava com o cachorrinho na madrugada tivesse um celular com câmera, então? A mesma tecnologia que pode nos encrencar, pode nos salvar.
Vou parar o texto por aqui, mas não faço ideia de quando vou parar de pensar e falar sobre Ripley com qualquer um que me dê um brecha. Então, se quiser falar sobre Ripley, pode responder esse e-mail ou deixar um comentário. Aliás, assistirei novamente nesse fim de semana (obsession mode on).
👋 Para terminar…
Esse curta me arrancou algumas lágrimas (por bons motivos).
Na última terça-feira, a Loewe Foudation divulgou o vencedor da edição 2024 do Loewe Craf Prize, o mexicano Andrés Anza. Como essa edição está cheia de spoiler mesmo, já aviso que ele será o tema principal da edição de ArteLetter do próximo domingo. Assine aqui para receber.
Esse mês passei oito dias em Nova York, visitei alguns museus e galerias, e fiz fotos aproximadas de algumas obras, captando alguns detalhes. Reuni todas elas nesse Reels que, modéstia à parte, achei que ficou legal.
Um dos museus que visitei em NYC foi o MoMA e comprei esse livro: editado pelo próprio MoMA, traz um compilado de imagens e textos sobre as principais obras do museu.
Uma das obras que está no MoMA, e que é abordada nesse livro, é Mãe Migrante, fotografia feita em 1936 pela fotógrafa Dorothea Lange, em Nipomo, Califórnia. Entre outras coisas, o livro diz:
A obra de Lange opera uma conexão entre o estilo descritivo da fotografia documental e o princípio do engajamento social. Ela se tornou uma pedra de toque para os fotógrafos que acreditam que seu trabalho deveria não só registrar as condições sociais, mas também convencer as pessoas a melhorá-las.
E eu penso - fazendo um paralelo com a fotografia PB de Ripley - que, entre outros fatores, um dos que fazem essa fotografia ser tão tocante é o fato dela ser em preto e branco. Se ela fosse colorida, as marcas de expressão no rosto, a cor da pele ou dos cabelos de Florence Owens - a mulher retratada - entrariam no campo visual do observador, ganhariam significados e interpretações e competiriam com aquilo pela qual a fotografia ganhou destaque: a representação do intangível (o cansaço, a preocupação e a desolação). Isso para citar só um exemplo. O preto e branco é um recurso de manipulação de imagens e mensagens muito poderoso.










O gatoooo hahaha 🥰🐈
Que bom que gostou, Lu! Entendo isso que você falou da “sensação ruim” do filme. Mas é isso que você comentou, o Ripley na série é muito bem trabalhado! Meio que um anti-hero